Entidades de classe: o que elas podem e não podem fazer*


Se há algo que tenho obrigação de conhecer bem é o funcionamento das entidades de classe, sobretudo as do TRC. Afinal, vivo intensamente esse ambiente desde 1976, quando – com Roberto Mira e alguns outros poucos remanescentes – participamos de uma histórica disputa pela presidência do SETCESP, entre o candidato à reeleição Aristóteles de Carvalho Rocha e o de oposição, Sebastião Ubson Carneiro Ribeiro. E, desde então – lá se vão 40 anos –, nunca mais deixei de atuar na vida associativa do setor.

Com todo respeito pelo grande Rochinha, que, ainda hoje, do alto de seus 95 anos, cheio de vigor e de vontade de viver, ainda nos brinda com ensinamentos valiosos – e que, na ocasião, era nosso adversário circunstancial – sempre considerei que aquele pleito foi um marco na história do TRC. Com ele, superou-se a fase do pioneirismo e teve início a “era moderna” do setor.

Vieram as reuniões do CONET/Intersindical, verdadeiros Congressos, a cada 4 meses, em sistema de rodízio pelas principais cidades do país, sob coordenação da NTC, presidida então por Oswaldo Dias de Castro; as discussões do sistema tarifário do TRC, tendo à frente outra grande figura – Thiers Fattori Costa; a criação de novos sindicatos e das federações específicas do TRC; a luta contra a desnacionalização do setor, que resultou na Lei 6.813/80, em pleno governo militar; o trabalho extraordinário durante a Assembléia Nacional Constituinte (87/88), em que contamos com participação, como parlamentar, de Denisar Arneiro, ex-presidente da NTC, sem o qual teria sido impossível a criação posterior do SEST/SENAT; a conquista e reorganização da nossa Confederação (então CNTT, hoje CNT), que ganhou grande relevância sobretudo a partir do efetivo funcionamento daquelas entidades do sistema “S” (1994).

As circunstâncias me fizeram partícipe e, em alguns momentos, protagonista, desse esforço de construção do sistema nacional de representação do setor, do qual sempre fui entusiasta, certo de que, sem ele, o TRC jamais seria respeitado como atividade empresarial relevante.

Depois, acabei tendo a honrosa oportunidade de presidir a NTC por dois mandatos (de 2002 a 2007) e sou, até hoje, conselheiro da entidade, além de diretor da CNT. Nessas condições, pude acompanhar de perto cada passo da elaboração, discussão e aprovação de leis essenciais, como a 11.442/07, a 12.619/12 e a 13.103/15, além da grande vitória representada pela desoneração da folha de pagamento, primeiro com a inclusão do TRC (que originariamente não estava contemplado), na faixa de 1% do faturamento e, depois, com a sua permanência na faixa de 1,5%, quando o Governo pretendia elevar a contribuição do setor para 2,5%.

Essas últimas conquistas eu tive a alegria de ver consumadas sob o comando competente daqueles que me sucederam na presidência da NTC, os companheiros Flávio Benatti e José Hélio Fernandes, com os quais, graças à bem sucedida iniciativa de criação da ComJovem, assistimos a uma nova transição intergeracional, desta vez mais suave e natural.

Todas essas reminiscências vêm a propósito de certas coisas que tenho ouvido de empresários do setor, distantes da vida associativa/sindical e, naturalmente, pressionados por prejuízos crescentes e, em alguns casos, por um forte endividamento, por conta do desequilíbrio entre oferta e demanda de transporte. A oferta, turbinada pela “bolha rodoviária” e por outros fatores que tenho examinado em artigos anteriores. Já a demanda, minguando sem parar, puxada pela pior recessão em muitas décadas.

Não bastasse isso, a tempestade perfeita que desaba sobre o país – e sobre o TRC em particular (não foi à toa que dei o nome de “Uma crise dentro da outra” à minha palestra mais recente sobre este verdadeiro filme de terror) – torna-se ainda mais devastadora com a volta da inflação de dois dígitos, trazendo o forte aumento de alguns dos principais insumos do setor, diesel à frente.

Caminhões sobrando, carga sumindo, frete derretendo, produtividade comprometida, custos disparando. Por consequência, prejuízo crescendo. Pior: tudo isso, sem perspectiva de melhora sequer a médio prazo. Quando o empresário de transporte tenta discutir com o cliente uma forma de repartir essas perdas, encontra-o muito pouco propenso a qualquer negociação. Mesmo porque sobram no mercado muitos outros transportadores desesperados, dispostos a fazer qualquer negócio, a qualquer preço, apenas para manter os seus caminhões rodando, numa postura verdadeiramente suicida.

Estamos, portanto, num cenário perfeito para que a “lei da oferta e da procura” manifeste a sua inexorabilidade. Embora seja uma lei econômica, ela agirá com a mesma implacável certeza de uma lei física: a “lei da gravidade”, por exemplo.

Diante desse quadro, empresários desorientados, assustados, cansados – não sabendo mais o que fazer e a quem apelar, já que o Governo mostra-se cada vez mais frágil e ausente – voltam sua ira para as entidades de classe, exigindo que elas “façam alguma coisa”. E “logo”, como ouvi de um empresário há poucos dias, “porque, se demorar, estaremos todos mortos”...

Não deixa de ser significativo – embora isso, na prática, não faça a menor diferença – que muitos dos que exigem isso não sejam sequer associados às entidades. E que em todas as situações se mostrem insensíveis a contribuir para que elas possam ter a capacidade técnica e a força política que imaginam que elas deveriam ter. Mas digo que isso é indiferente, simplesmente porque não há entidade, governo ou qualquer força do universo capaz de revogar a “lei da oferta e da procura”, da mesma forma que seria ridículo esperar que alguém pudesse anular a “lei da gravidade”.

Entidades são boas para veicular anseios, para intermediar entendimentos com governantes e políticos, para construir soluções legislativas e lutar pela sua aprovação, para organizar eventos que reúnam o setor e debatam ideias e soluções, para transmitir conhecimentos, bons exemplos e tentar mudar padrões de comportamento. E as entidades de transporte têm feito essas coisas desde sempre, como penso ter evidenciado na apertadíssima síntese de mais de 40 anos de história.

Mas elas não podem substituir a decisão do empresário sobre o seu negócio. No momento em que as soluções recomendáveis são encolher a oferta, reduzir fortemente os custos fixos, praticar uma política comercial conservadora e seletiva, abandonar nichos de mercado que estejam excessivamente competitivos, só o empresário pode fazer isso, olhando para dentro da sua empresa e assumindo os riscos que lhe competem.

É da somatória dessas decisões individuais, de um lado, e da retomada do crescimento, de outro, que crise acabará sendo lentamente debelada e substituída por um novo ciclo positivo. Se a retomada do crescimento depende de decisões governamentais e fatores macroeconômicos, a sobrevivência de cada empresa depende de decisões do empresário e de fatores microeconômicos.

Enfim, as entidades de classe podem muito, mas não podem fazer milagres (como revogar as leis de mercado, por exemplo), nem substituir a mão visível e pesada do empresário, no comando do seu negócio. Quem ignorar isso provavelmente se dará muito mal e não sobreviverá à travessia do deserto...

*Bolg do Geraldo - Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.